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As Minhas Percepções Até Aqui Sobre o Meu Diagnóstico Tardio de Autismo

Introdução

Para muitas pessoas, o Transtorno do Espectro Autista se resume a manias, gestos desregulados e déficits cognitivos. A pessoa deve “parecer” autista.

O que muita gente não sabe é que não existe nenhum fenótipo para autismo, pois essa condição é neurológica e não existe uma “aparência autística”. O TEA (como vou tratá-lo daqui pra frente) é multifacetado, é um espectro e, por isso, é diverso e cada indivíduo possui seus traços.

No ano de 2024, aos 27 anos e trabalhando como gerente na prefeitura da minha cidade, eu fui diagnosticado com TEA nível de suporte 1. Isso aconteceu em um momento da minha vida em que o trabalho como comissionado estava me causando desgastes que, em outro momento, eu me culparia fortemente por estar sentido.

“Ah, mas é um autismo leve…” Alguns poderiam dizer, mas não existe autismo leve.

O que existe são níveis diferentes de suporte que uma pessoa precisa para viver bem, mas isso não significa que o sofrimento não exista em todo o amplo espectro do autismo.

Todo ser humano merece dignidade e respeito e com autistas não é diferente, independentemente do nível de suporte que ele precisa pra viver. Isso ocorre, pois todo autismo leva ao sofrimento, já que o mundo e a sociedade não são moldados para pessoas autistas.

O meu intuito com esse post não é exaurir o tema do autismo, já que é amplo, mas fazer uma reflexão e, de certa forma, um relato pessoal sobre o que tenho experienciado enquanto indivíduo tardiamente diagnosticado com a condição.

1ª Percepção - As pessoas não sabem o que é autismo.

Há algum tempo, resolvi fazer uma carteirinha de identificação para o espectro autista. Pensava que usar essa carteirinha fosse resolver - ou pelo menos reduzir - dissabores que um autista enfrenta na sociedade.

Locais movimentados, como supermercados, escolas, parques, etc., podem ser desagradáveis para pessoas no espectro, devido ao excesso de estímulos presentes nesses locais. Eu nunca gostei desses lugares e o diagnóstico só trouxe mais clareza das razões pelas quais tais locais sempre foram incômodos pra mim. Isso acontece, pois o cérebro autista processa informações de um jeito diferente.

Isso significa que o cérebro tem dificuldades para filtrar coisas irrelevantes do ambiente, como ruídos distantes e quaisquer cacofonias que estejam circulando no ambiente. Isso causa uma sobrecarga sensorial e, consequentemente, gera um desconforto que indivíduos adultos com o espectro autista não notam como sendo um sintoma até que ele seja diagnosticado.

O que acontece é um mau-humor súbito, às vezes com causas obscuras. Isso é poque autistas têm problemas em se auto-regular emocionalmente. Então ao sair de ambientes assim sem um suporte adequado, como um protetor auricular, pode levar um tempo para que a pessoa se recompanha e se reestabeleça emocionalmente.

Me lembro de um dia chegar em uma loja e uma mulher me perguntar se meu filho era autista só porque eu estava com o cordão do quebra cabeça no pescoço. Estava tentando me dessensibilizar dessa nova informação, que não recebi tão bem quanto pensei que receberia. Eu a disse que eu era o autista. O clima ficou muito esquisito, fiquei muito constrangido e após algumas palavras, saí com a cara queimando de vergonha.

Se era eu quem estava usando o cordão, por que essa pessoa presumiu que eu não seria autista? Porque ela viu um autista agindo de um modo “normal”.

As pessoas não sabem o que é o autismo.

2ª Percepção - O Diagnóstico às vezes não é tão libertador

Enquanto investigava minha condição, li relatos de muitas pessoas se dizendo renovadas, outras dizendo que era como se um fardo tivesse sido removido…

Mas infelizmente não aconteceu comigo.

Primeiro, não é fácil sair por aí falando “sou autista”. Isso acontece por conta do estigma e da dificuldade individual em saber o momento certo de externalizar determinadas informações. Muitas pessoas não acreditam no diagnóstico.

Inclusive, tive uma chefe que dizia que eu não era autista, que eu era “Asperger”. Isso só denota a falta de compreensão das pessoas em relação à condição. Asperger é um termo advindo do nome de Hans Asperger, que não é mais incentivado pela comunidade autista como uma forma correta de falar sobre a condição do TEA nível 1 de suporte, devido ao supostos envolvimentos desse pesquisador com regime nazista de Adolf Hitler.

A consciência de ser um trabalhador e, ao mesmo tempo, de ser portador do especetro autista, não é fácil. A condição traz diversos desafios na convivência em sociedade, como a baixa motivação social - que é a falta de motivação para iniciar e manter conversas, as dificuldades de regulação emocional e demais incômodos sensoriais.

Unir isso às responsabilidades da vida adulta é desafiador, pois quando tomamos consciência da situação em que estamos - com a falta de suporte social e familiar, a ignorância da sociedade civil em relação ao problema, os custos com medicação e terapia - acabamos por entrar em um processo difícil em que o resultado é nos sentir mais deslocados do que já somos.

3ª Percepção - O Autoconhecimento é preciso

Diante de tamanhas dificuldades, como as que relatei, percebi o quão importante é desenvolver o autoconhecimento e a autoconsciência. Não são duas coisas fáceis de se realizar. É importante salientar que a terapia possui um papel crucial nesse processo.

Olhar pra dentro de nós mesmos com a consciência autística faz com que entendamos nossas reações e comportamentos, nossa relação com o mundo e com os outros e, não menos importante, nossa relação com nós mesmos.

É importante que saibamos o momento certo de exigir os nossos direitos e o momento certo de ficar em silêncio para evitar maiores problemas. Imagino que isso seja algo bem comum no caminho de um autista. Acontece que nem sempre é fácil reclamar o direito do uso da fila preferencial, por exemplo.

Nesse processo, a habilidade essencial a se desenvolver é a de autocompaixão. Ser autocompassivo é importante, pois nos liberta dos padrões de culpa e de autocrítica exagerados. Desenvolver essa habilidade, no entanto, é difícil.

Eu sempre fui muito perfeccionista e qualquer quebra nesse padrão faz com que eu seja extremamente crítico comigo mesmo. Tenho tentado trabalhar formas de pensar mais adaptativas, mas todo individuo que faz terapia sabe o quão difícil mudar padrões distorcidos de pensamento pode ser desafiador.

Mas não há outra forma de realizar a tarefa, pois pensar em si mesmo de maneira compassiva é priorizar a saúde mental.

4ª Percepção - Quebrar a lógica moderna também é preciso

Bom, nos últimos anos eu tenho buscado me desenvolver profissionalmente e socialmente. Estudei por quase um ano para provas de concurso público da área judiciária pois considerava que seria uma solução segura. Quando comecei a tomar os medicamentos, estudar ficou mais fácil, já que antes eu não sabia as razões da minha dificuldade em manter o foco em assuntos difíceis.

Além de autista, sou portador de TDAH, com predominância hiperativa. Essa característica é a mais difícil no que se refere a aprendizado, pois me debruçar sobre assuntos que são de pouco interesse tende a ser desgastante e aumentar os stimmings - os comportamentos auto-estimulatórios. Em mim, eles ocorrem por meio da dermatilomania - que é o hábito de arrancar pele dos dedos - e agitação.

Eu não entendia porque conseguia ficar 4h estudando durante uns 28 dias e sofrer uma queda exponencial nesse ritmo com o passar do tempo.

Me vi repetindo esse processo com frequência emk vários projetos que tentei desenvolver, mas o maior problema não foi a falta de medicamentos e sim a produtividade tóxica que chegou até mim enquanto concurseiro.

Estude enquanto eles dormem É muito comum ouvir esse tipo de comentário de professores e cursos onlines no mundo dos concursos públicos. Relatos de pessoas que estudavam de 5 a 8 horas por dia, até mais, faziam com que me comparasse com essas pessoas. “Eu preciso estudar pelo menos 5h por dia”, era o que ditava as regras internas do meu processo de estudos.

Aí que começa o sofrimento, ora, embora não impossível, com as obrigações do dia-a-dia, como trabalho, transporte, casamento, etc, era muito difícil manter esse padrão elevado de podutividade durante tanto tempo.

Havia dias que eu não conseguia. E isso era difícil de digerir, pois eu não aceitava o fato.

Só comecei a quebrar um pouco desse padrão recentemente, durante a terapia. Meu psicólogo me disse que eu precisava aprender a flexbilizar mais, a entender que a maioria das pessoas sequer estudam diariamente.

Estou até agora no processo e confesso que não é nada fácil aceitar que meu ritmo de estudo não atende às minhas expectativas irreais, e isso tende a ser bastante frustrante.

O utilitarismo também sempre foi algo presente. Se lia um livro, deveria ser um livro que agregasse profissionalmente, se lia um romance era perda de tempo.

E mesmo com todo esse sofrimento, não conquistei - ainda - o trabalho que quero.

Priorizar o bem estar é algo que nunca havia passado na minha cabeça até agora. Pois bem, com o ritmo frenético da sociedade, não priorizamos o nosso bem estar. Pensar em dormir mais horas é absurdo, é perda de tempo.

Se eu dormi mais tarde, logo deveria acordar no mesmo horário pra estudr, mesmo que isso prejudique meu bem estar ao longo do dia.

Porém, a terapia me trouxe uma outra abordagem: priorizar o bem estar também é produtivo.

Uma pessoa desgastada, próxima do burnout, não conseguirá ter bons resultados em seu processo de estudos e no seu trabalho. Seus relacionamentos serão piores, seu desempenho acadêmico também.

Então iniciei a difícil tarefa de não estudar todos os dias do mesmo jeito e priorizar meu sono, mesmo que isso signifique sacrificar 1h - 30 minutos de estudos.

“Ah, mas é só dormir mais cedo” - Eu tenho MUITA dificuldade em mudar rotina e nem sempre é fácil dormir mais cedo quando se está há muitos anos dormindo mais tarde.

Felizmente, essa prática tem dado resultados e estou conseguindo aos poucos mudar isso. Eu acordo de madrugada para estudar, já que sou estudante de Sistemas de Informação e almejo uma vaga na área de tecnologia.

Mas há dias em que acordo mais cansado e ao invés de estudar às 4h da manhã, começo às 5h.

E por mais simples que isso pareça, não é fácil pra mim como autista. As mudanças não devem ser repentinas, devem ser graduais e conscientes, para que eu tenha tempo de processar tudo isso sem maiores estresses.

O capitalismo moderno nos leva a sermos máquinas de produtividade, máquinas de fazer dinheiro. Mas não somos isso, somos seres humanos e somos diversos.

Por isso é tão importante que façamos uma curadoria do que consumimos na internet, pois existem regras tão rígidas sendo espalhadas por “influenciadores” por aí, que não se aplicam a todos.

Conclusão

Bom, o meu intuito aqui neste blog é escrever minhas percepções, a princípio sem muita preparação.

O processo de autoconhecimento e de identidade é um processo de uma vida. Não há fim. E precisa ser constante, sincero e verdadeiro. Eu continuo pesquisando sobre TEA constantemente e pretendo trazer conteúdo sobre o assunto, já que é algo que considero importante tanto pra mim quanto para a sociedade em geral.

Agradeço a todos que leram até aqui e fiquem a vontade para entrar em contato comigo no Mastodon (link no rodapé da barra lateral) ou via e-mail.

Em breve - mas sem pressão - escreverei mais para o blog.

Esta postagem está licenciada sob CC BY 4.0 pelo autor.